terça-feira, 5 de junho de 2012

Poema de Ricardo Reis - Modulo 9


 Não tenhas nada na mãos

Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma, 

Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra

Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.


Analise:


Os versos «Não tenhas nada nas mãos / Nem uma memória na alma…» remetem para a filosofia epicurista defendida por Ricardo Reis, que apela à moderação das emoções, renunciando ao prazer, abstendo-se de qualquer desejo ou vontade, numa atitude contemplativa perante a vida. Defendendo a necessidade de viver num estado de profunda serenidade e desprendimento, o sujeito procura assim iludir o sofrimento que a ideia de morte lhe inspira.

O conselho do sujeito poético nada mais é do que uma tentativa ilusória para combater a dor e a perturbação causadas pela passagem do tempo e a proximidade da morte. A recusa de qualquer compromisso que comprometa a sua liberdade interior é a única forma de superar a angústia face a uma fatalidade inevitável («Ao abrirem-te as mãos / Nada te cairá.»).

As interrogativas retóricas apontam para a filosofia estóica, pois o sujeito poético está consciente de que o Fado é inalterável e cabe a cada um, de forma altiva e resignada, aceitar o fim e a morte. O poder, o mérito e a grandeza humana nada valem perante essa cruel certeza: tudo é efémero e está condenado à fatalidade («Que trono te querem dar / Que Átropos to não tire?»).

As expressões «Colhe flores» e «Senta-te ao sol» estão relacionadas com a filosofia horaciana do carpe diem, aproveitar o momento presente, de forma serena e contida, para evitar qualquer perturbação. A expressão «larga-as da mão» sugere uma atitude epicurista, convidando à recusa de qualquer emoção intensa, porque só recusando os compromissos é que se conhece a verdadeira tranquilidade.

O verbo abdicar traduz a ideia de recusa, de abandono. Assim, os últimos versos do poema («Abdica/ E sê rei de ti próprio.») sugerem que só é possível evitar a dor e a perturbação através da aceitação lúcida e resignada das leis da vida, no limitado espaço de liberdade de que dispomos (estoicismo).

Poema Ricardo Reis - Modulo 9


Segue o teu Destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.


         O uso do imperativo dá um tom geral de comando moral, de ensinamento. É como se o poeta, chegando a conclusões, as fizesse perdurar no tempo,   ensinando-as aos seus discípulos.
        Nas duas primeiras estrofes, Reis aconselha que se viva a vida sem pensar, porque nós nunca vamos mudar na essência do que somos, apenas a nossa interpretação da Natureza.
        Reis procura apenas fugir da dor. Por isso recomenda: vive só e deixa a dor nas aras como ex-votos aos deuses. Reis quer estar só e deixar de sofrer. Portanto conclui que a sua dor vem de estar com os outros. A sua dor vem da sua vida exterior. É essa vida que dá em sacrifício do altar dos deuses.
        Isso confirma-se no que ele diz: "Vê de longe a vida/Nunca a interrogues". A resposta está além dos deuses – ou seja, é absurda, existe para além do divino, e existe apenas porque pensamos nela.
        Antes devemos "imitar o Olimpo no nosso coração". Ou seja, ser deuses por dentro, ser mestres do nosso íntimo. Não pensarmos dar-nos-á acesso a uma tranquilidade que desconhecemos. Deixaremos de sofrer.

Poema de Álvaros de Campos - Modulo 9


Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Analise:

        Álvaro de Campos mostra uma imagem extremamente negativa de si mesmo, sendo ele apenas um vaso vazio que a empregada partiu na escada. A imagem dos cacos representa a ideia de que o poeta se sente sem existência, como se não reconhecesse em si uma alma. Observa-se que os cacos, apesar de conscientes de existirem, não têm consciência de serem um conjunto. Para expressar a falta de sentido da sua existência, o poeta termina o poema mencionando deuses indiferentes com o caco no tapete, uma pobre representação de uma obra, de uma alma, de uma vida.