Não
tenhas nada na mãos
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Das mãos mal as olhaste.
E sê rei de ti próprio.
Analise:
Os versos «Não tenhas nada nas mãos / Nem uma memória na
alma…» remetem para a filosofia epicurista defendida por Ricardo Reis, que
apela à moderação das emoções, renunciando ao prazer, abstendo-se de qualquer
desejo ou vontade, numa atitude contemplativa perante a vida. Defendendo a
necessidade de viver num estado de profunda serenidade e desprendimento, o
sujeito procura assim iludir o sofrimento que a ideia de morte lhe inspira.
O conselho do sujeito poético nada mais é do que uma
tentativa ilusória para combater a dor e a perturbação causadas pela passagem
do tempo e a proximidade da morte. A recusa de qualquer compromisso que
comprometa a sua liberdade interior é a única forma de superar a angústia face
a uma fatalidade inevitável («Ao abrirem-te as mãos / Nada te cairá.»).
As interrogativas retóricas apontam para a filosofia
estóica, pois o sujeito poético está consciente de que o Fado é inalterável e
cabe a cada um, de forma altiva e resignada, aceitar o fim e a morte. O poder,
o mérito e a grandeza humana nada valem perante essa cruel certeza: tudo é
efémero e está condenado à fatalidade («Que trono te querem dar / Que Átropos
to não tire?»).
As expressões «Colhe flores» e «Senta-te ao sol» estão
relacionadas com a filosofia horaciana do carpe diem, aproveitar o momento
presente, de forma serena e contida, para evitar qualquer perturbação. A
expressão «larga-as da mão» sugere uma atitude epicurista, convidando à recusa
de qualquer emoção intensa, porque só recusando os compromissos é que se
conhece a verdadeira tranquilidade.
O verbo abdicar traduz a ideia de recusa, de abandono.
Assim, os últimos versos do poema («Abdica/ E sê rei de ti próprio.») sugerem
que só é possível evitar a dor e a perturbação através da aceitação lúcida e
resignada das leis da vida, no limitado espaço de liberdade de que dispomos
(estoicismo).